Sobre Skam, Fé, Juízes e Feminicídio 

Por: Daniela Klem 

Começo esse texto sem saber ao certo onde ele terminará, qual caminho seguirá. Tenho inquietações dentro de mim, que colocando-as escritas não fazem o menor sentido, mas tentarei destrinchá-los. Skam, fé, Juízes 19 e feminicídio. Talvez soe confuso, mas minha mente funciona desse jeitinho. Escrevi, reescrevi, apaguei, comecei outro parágrafo. E é nesse fluxo que estou tentando organizar os pensamentos que me rondam. Esse texto não tem a finalidade de exaltar uma religião ou defendê-la, é apenas a minha percepção sobre o que tenho vivido e visto. 

Faz uns dias que descobri a existência da websérie Skam. Recebi a indicação de uma amiga enquanto conversávamos sobre a nossa fé. Contextualizando, uma das protagonistas da websérie é muçulmana, e durante boa parte da série, ela dialoga sobre seu estilo de vida e sua fé. Me vejo muito em Sana, porque na maioria das minhas relações estou tentando furar a bolha da religiosidade. Sou cristã e não me encaixo no padrão inventado pela nossa cultura do que é ser uma mulher cristã, e tenho caminhado em conseguir respeitar a linha entre quem eu sou e o que a minha fé me impulsiona para ser. Sana deixa claro que sua fé é o que a guia, mas não a isenta de conhecer novas perspectivas e, a partir disso, tomar decisões de acordo com a sua crença. Hoje percebo o quanto o cristianismo é plural, e isso sim faz todo sentido, pois a todo momento estamos tratando de vidas. Mas ser mulher, trazer essas novas perspectivas e dialogar sobre elas no meio evangélico não é tão fácil quanto escrevo. 

Um fato que preciso expor: sempre me senti insegura em relação à exposição da minha fé. Não deveria, mas ter consciência social e viver no Brasil sempre me deixou com medo de afirmar que sou cristã. Por talvez ser taxada por adjetivos que eu mesma tenho repulsa. Mas sou mulher e cristã. Essa frase totalmente deslocada da realidade da nossa sociedade seria algo despretensioso. Mas olhar para a história da humanidade, perceber o que é ser mulher diante disso, torna essa frase um ato de resistência. E digo dentro da bolha cristã mesmo. Alguns vão dizer que não. Mas faz um tempo que sentia a necessidade de dialogar sobre essa escolha com outras pessoas, especialmente, mulheres. Acredito que aqui seja um bom espaço para isso. 

Se tem algo que sempre me deixa vulnerável, é minha fé. Vulnerável no sentido de ser através dela onde mais me reconheço. Me olho como se fosse num espelho, e ali consigo enxergar os meus defeitos e minhas necessidades. Mas também consigo visualizar minha identidade, meus talentos, a minha verdade, e encontro um futuro, uma paz e o amor que me cerca. Como cristã, tento dedicar diariamente um momento a Deus. Leio a Bíblia, oro e coloco para fora meus medos, questionamentos, desejos e tento entender, segundo a minha fé, as melhores escolhas para se tomar. Foi durante esses momentos que um trecho em específico me deixou em estado de repugnação. Juízes 19 relata um caso extremo de feminicídio na Bíblia. Já havia passado por esse texto e ele sempre me deixava com uma sensação péssima. Definitivamente, não é uma passagem que traz paz e conforto, mas sim, revolta. Uma demonstração clara que o corpo da mulher, desde a antiguidade, sempre foi violado, objetificado e desprezado. Das maneiras mais lascivas possíveis. Hoje, diferente do que costumo escrever, preciso falar sobre juízes 19. 

O livro de Juízes, capítulo 19, trata da história de uma mulher que foi estuprada durante toda uma noite, e após morta, teve seu corpo esquartejado e entregue às 12 tribos de Israel, como uma espécie de incitação à uma guerra civil pelo ato cometido. O contexto social e histórico da sociedade da época já era extremamente machista. Mulheres eram

usadas como objetos de satisfação sexual. Não eram contadas nos censos populacionais, eram negociadas por seus pais a casamentos. E tinham seus corpos comparados a ritos que eram destinados a animais. Olhar com um ponto de vista contemporâneo para a sociedade passada é um ato falho, mas mesmo com todo o cuidado de análise, não há como negar o quanto o machismo estava ali presente. Como visto em Juízes 19, nem após a morte o corpo feminino deixa de sofrer violações. Há uma fragmentação do ser mulher. 

Essa história perturbadora, tirada do seu eixo narrativo histórico dentro de um enredo único, me fez ficar em dúvida de qual era a mensagem que estava sendo passada. Na minha visão, sem qualquer aprofundamento, poderia – e já fiz isso – interpretar o quanto o cristianismo reforça a misoginia, o feminicídio. Reforçando posturas machistas para os dias atuais. Mas foi no meu momento de reflexão que um questionamento ficou em minha mente e fui mais a fundo: o padrão da história bíblica denúncia tudo aquilo que vai contra os princípios de Deus. Ser mulher é um ato divino. O relato contado é uma denúncia, e seu objetivo é causar revolta e indignação. Mas o que eu tenho feito com essa revolta? O que eu tenho denunciado dentro da sociedade e, principalmente, das instituições cristãs atuais? 

Quando passei a entender a Bíblia como uma única narrativa e perceber o intuito de Jesus em tornar mulheres protagonistas na história e participantes dos seus feitos, percebi que Ele realmente veio para quebrar os padrões que se repetiam, como o ocorrido em Juízes 19 e em tantos outros trechos que evidenciam o machismo presente. Dando espaço para Marias, Marias Madalenas, Martas, Isabeis, Suzanas. Dando nome, dignidade, identidade. Mas se Jesus veio ao mundo com essas referências e ser cristão significa ser seus imitadores, como pode existir um alto número de cristãos e um grande índice de feminicídio no Brasil? A conta não bate. Poderia discorrer como homens se apropriam de narrativas e fés para deturpar e manipular, a fim de reforçar seus meios de poder. Mas isso já sabemos. O que quero a partir daqui é, possivelmente, encontrar aquelas que carregam a mesma fé que a minha, mas já foram tantas vezes silenciadas. E através desse silêncio nos sentimos inseguras diante de qualquer posicionamento. Venho também dizer que não é sua culpa, mas também, reflexo do machismo que já na antiguidade silenciava, matava e subjugava mulheres. O anonimato dos personagens em Juízes 19 faz com que qualquer um pudesse se ver naquela situação. Eu, você, nós. O abuso, a violação e a violência ainda se faz tão presente quanto no passado. 

Sou nascida e criada em Duque de Caxias, umas das cidades da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro. Pensar no meio evangélico nesta região é lembrar-me da minha tia que, enquanto minha família ainda não era cristã, me levava junto com meus irmãos e meus primos para as atividades direcionadas às crianças da comunidade. A realidade de muitas mulheres dentro da baixada é uma vida de dedicação à igreja e à comunidade. E de verdade, é lindo ver a fé de pessoas tão simples que dedicam suas vidas aos outros, anulando seus próprios problemas, pois foram ensinadas biblicamente a amar ao próximo como amam a si mesmas. Mas há uma falha nesse processo. Pois muitas não foram ensinadas a se amar, a olhar o seu reflexo como imagem e semelhança de Deus. Muitas vivenciam casos de violência doméstica e não compreenderam que esses casos não são normalizados na Bíblia, mas denunciados. E é por amor a essas vidas que deixo essa reflexão, para mim, para você. Que o machismo não tenha mais poder de nos silenciar enquanto nossa fé nos impulsiona a denúncia.

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